DA  RESPONSABILIDADE  CIVIL  E  PENAL

MIGUEL REALE

 

         Quando, em 10 de janeiro de 2003, entrar em vigor o novo Código Civil, mais inexplicável será o tratamento legislativo dado, no Brasil, ao essencial problema da responsabilidade dos transgressores da lei nos planos civil e/ou penal.

         É que, desde então, a maioridade começará aos dezoito anos, sendo os menores de dezesseis anos considerados absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil, o que quer dizer que passarão a ser “relativamente capazes” as pessoas entre dezesseis e dezoito anos.

         Isto não obstante, continuará em vigor o artigo 228 da Constituição de 1988, segundo o qual “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”, disposição infeliz que não pode deixar de ser obedecida pelo Código Penal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

         Igualmente em vigor estará, no entanto, também o inciso II do  § 1º do artigo 14 da Carta Magna, o qual declara facultativo o voto conferido aos maiores de dezesseis e menores de dezoito anos, qualquer que seja a eleição, desde a de vereador até a de presidente da República.

         A mim me parece inconciliáveis esses textos legais por motivos de ordem lógica e sociológico-política, como passo a expor.

         Em princípio, cabe reconhecer que todos os indivíduos devem ser considerados responsáveis por seus atos, de conformidade com a natureza destes, ficando sujeitos às sanções civis e/ou penais estabelecidas em lei, salvo as exceções nela previstas.

          O novo Código Civil, em seus artigos 2º e 3º, disciplina parte dessa matéria, distinguindo os casos em que a responsabilidade é absoluta, por total falta de discernimento, ou relativa para certos atos, tal como se dá, por exemplo, quando o agente tenha mais de dezesseis  e menos de dezoito anos, seja ébrio habitual ou viciado em tóxico.

         O assunto é extremamente delicado e complexo, podendo informar que poucas disposições da nova Lei Civil deram tanto trabalho como o da redação dos dois citados artigos, aos quais o douto ministro José Carlos Moreira Alves dedicou reiterada atenção, como relator de sua Parte Geral.

         O ponto mais discutido e que apresenta as soluções mais discrepantes é o pertinente à fixação da idade como condição de total ou parcial discernimento. Na área penal, então, as divergências chegam a diferenças extremas, havendo países em que a inimputabilidade devida à idade é deixada a critério do juiz. Daí a perplexidade em que ficamos quando temos notícia de que  na Inglaterra ou nos Estados Unidos da América são aplicadas penas severíssimas a menores de 8 ou 12 anos.

         No Brasil, como já lembrei, a Constituição de 1988, que sempre peca por exagero, decretou a inimputabilidade penal de quantos tenham menos de dezoito anos, ainda mesmo que seja evidente a prática do crime com plena consciência do mal causado pelo infrator.

         A abstenção do legislador no tocante à fixação da idade em que começa a impuntabilidade penal não se me afigura exemplo a ser seguido, mas é manifestamente absurdo o mandamento constitucional vigente no Brasil, já agora coincidente com a maioridade na vida civil, aos dezoito anos.

         Não creio que possa haver um critério científico capaz de justificar esta ou aquela outra idade, havendo nessa escolha certas margem de livre opção à luz do que nos pareça mais plausível. Daí ser eu mais propenso a fazer coincidir a responsabilidade penal com a responsabilidade civil relativa, aos dezesseis anos, e, sobretudo,  com a responsabilidade política, pois é nessa idade que o adolescente brasileiro começa a se tornar cidadão, com a outorga do direito de voto em qualquer pleito eleitoral.

         O que me leva a assim  decidir é, outrossim, a verificação de que a quase totalidade dos menores infratores tem de dezesseis a dezoito anos, sendo estes os preferidos como companheiros pelos delinqüentes ao comporem suas quadrilhas. Essa preferência se explica por servirem os menores como escudo usado pelos bandidos para elidir a própria responsabilidade, havendo mesmo casos em que é a eles que confiam a prática pessoal do homicídio, a fim de se eximirem da sanção penal aplicável a esse delito.

         Ante uma realidade tão comprovada, custa crer que não figure, entre as revisões constitucionais, a eliminação do artigo 228 da Constituição, visto tratar-se de matéria mais própria da legislação ordinária.

         A esta altura de minha exposição, já estou prevendo a crítica de certos partidários do novo Direito Penal, para os quais a duração ou o peso da pena nada representaria na luta contra a violência que atormenta, hoje em dia, tanto as capitais como as cidades do Interior.

         Observo logo que não há como confundir o Direito Penal, estrito senso, com o Direito Penitenciário que regula a forma ou processo de cumprimento da pena. Entendo que os menores entre dezesseis e dezoito anos não devem ser isentos das sanções previstas no Código Penal, mas que a aplicação da respectiva pena só pode ocorrer em estabelecimento distinto dos destinados aos adultos, segundo critérios que visam mais a recuperação do que a punição dos criminosos.

         É claro que, para uma reforma dessa natureza, será indispensável a revisão total de nosso sistema penitenciário, prevalecendo as medidas de natureza educacional e técnica sobre as de estrita finalidade penal, sem o que os condenados, maiores ou menores, jamais serão restituídos à sociedade como cidadãos válidos e capazes de se compor com as forças normais do trabalho.

         Eu sei que é fácil desejar tais providências, sendo, por ora, quase impossível implantar imediatamente essas  reformas, devido à falta de recursos financeiros, mas é imprescindível colocar as soluções normativas nos seus devidos termos, ainda que importem em um programa de longo e progressivo alcance.

                                                                                              25/05/2002